500 anos de “Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente. Uma homenagem de Paulo César Gonçalves, recriando a cena do sapateiro, com outras “vestes”:
CENA V
«O CASTELEIRO»
Vem o casteleiro usando uma toga académica, carregando dicionários. As consoantes mudas formam uma auréola em torno da sua carrancuda pinha. Chegado ao batel infernal, diz:
CASTELEIRO
Ó da barca!
DIABO
Quem vem por aqui?
(com ironia)
Doutor casteleiro, emproado,
como vens tão carregado?…
CASTELEIRO
Mandaram-me vir, só me vesti…
E é para onde a viagem?
(O casteleiro estranha as consoantes mudas em torno da cabeça. Tenta enxotá-las)
DIABO
Para o lago dos danados.
CASTELEIRO
Mas eu ainda não morri!
Vim ao engano; Oh, desgraçados!
Contava ir a uma homenagem!
DIABO
Depois do que fizeste à Lusa Linguagem?
Esta é a tua barca, esta!
Vais para o Inferno, seu assassino!
CASTELEIRO
Arrenegaria eu dessa festa
e da piiii da barcagem!
Como poderá isso ser, morto,
se sou são, e ainda um menino?!…
DIABO
Tu morreste excomungado:
não quiseste saber;
Esperavas para sempre viver;
lançaste dois mil enganos;
Forjaste, há trinta anos,
a traição ao povo com teu mester;
Embarca, Doutor malaca,
esperei tanto para fechar-te a matraca!
E diz ‘puta’! Diz! Sem censura;
Teu verso epitáfico, ó ‘ternura’,
não se livrou do acordo ortográfico;
Melhor qualquer palavrão
do que a tua causa, ó intrujão!
E de menino não tens nada,
ó quase-gárgula da Colegiada!
CASTELEIRO
Pois digo-te que não quero!
DIABO
Tenho tempo, hás-de vir, aqui, aqui!
CASTELEIRO
Quantas missas eu ouvi!
Não me poderei salvar?
DIABO
Oh! Ouvir missa. E enganar?
Teu caminho antevi…
CASTELEIRO
E meus títulos, que lhes farão?
E o estatuto, e a reputação?
DIABO
E os dinheiros mal levados,
foi de quem a satisfação?
CASTELEIRO
Oh! Culpa a edição;
por uma piii de badana
de qualidade mediana
terei de cozer no caldeirão?
A leya é que ficou com o milhão!
Doutor casteleiro vai-se, todo ufano, a uma outra barca ali atracada, esperando que esta o leve à homenagem que crê merecer. Diz-lhe:
Ó desta caravela,
poder-me-ás levar nela?
ANJO
O que carregas t’embaraça.
CASTELEIRO
A minha obra? Não há mercê que me faça?
ANJO (apontando para a barca do Diabo)
Aquela barca que ali está
levará quem urdiu tal farsa.
Vai, alma embaraçada!
CASTELEIRO (erguendo os dicionários)
Ora, tenho eu por filhos
estes, a quem escrevi os trilhos;
Crias são, amadas,
já sabidas e cantadas
por criancinhas, com proveito!
ANJO
Pois! Se o tivesses feito direito,
seriam essas ‘crias’ escusadas;
CASTELEIRO (desiludido)
E é o que determinais,
que vá eu cozer ao Inferno?
ANJO (sentencioso)
Inscrito estás no caderno
das ementas infernais;
Doutor casteleiro torna à barca dos danados, dizendo:
CASTELEIRO (desapontado)
Ó barqueiro! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo,
levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!
Preparava-se o Diabo para pegar na prancha, quando se ouve o toque de um telemóvel. Doutor casteleiro estranha. Pensa ter escutado mal. Mas o toque é insistente. Doutor casteleiro coça a cabeça. Num ápice, desperta. O telemóvel vibra na mesinha de cabeceira. Estremunhado, pega nele e repara que é o verdelho que lhe liga. Respira fundo. Tudo não passara de um sonho.