Está preparada a mesa. A reserva havia sido feita (e paga) por Pedro (com dinheiro do Mestre), há já muito tempo.
(A Dona Augusta mandou-o logo “para o c*ralho” quando o apóstolo pediu uma mesa comprida em disposição horizontal. “Conices!”, acrescentou.)
Treze pratos sobre a toalha de papel branca; treze copos de metal que reflectem a luz que jorra dos focos embutidos no tecto; treze cadeiras ao longo da mesa.
De repente, escuta-se um barulho: são passos que ecoam. Abre-se a porta. As vozes surgem.
Treze homens, estranhamente vestidos, entram na sala principal.
A Dona Augusta recebe-os:
– Boa noite.
– Boa noite. – respondem.
Pedro dirige-se até à anfitriã. A Dona Augusta diz-lhe que não sabia que aquilo era um baile de máscaras. Acrescenta ainda que não conseguiu arranjar cordeiro, “que essa m*rda já nem se come”, e que “pão ‘ácido’ não há, nem na pavico!”
“P*ta que pariu esses pedidos!”, atira.
Diz-lhe também que fez rojões para todos, e que quem não ficar contente “bem que se pode ir f*der”.
Pedro fica envergonhado. Vai em direcção aos outros doze. Confidencia com eles. Um dos que o escuta toma a iniciativa de falar com a Dona Augusta.
– Boa noite.
– Que é que me queres, pá? Já cortavas o cabelo. Como te chamas?, atira-lhe a pitoresca Senhora.
– Chamo-me Jesus. E…
A Dona Augusta interrompe-o de imediato:
– Jesus, como o guarda-redes do Vitória?
– Quem?, pergunta Jesus.
– Oh que c*ralho…Tu não conheces o Jesus? Não me venhas f*der o juízo, vai sentar-te com os teus amigos que a comida vai já para a mesa.
Jesus encolhe os ombros e faz o que a Mulher lhe diz.
Parte dos treze senta-se. A Dona Augusta observa os movimentos.
(O Diálogo da Ceia)
Pedro, voltando-se para Jesus – Senhor, foi o que se arranjou…
Jesus – Não temas, Pedro. Festejemos a Páscoa, com ‘bujões’ ou lá o que é.
Dona Augusta, que escutava tudo – São rojões, ó parolo!
(Jesus e os outros doze olham para a Senhora, muito encavacados)
João, baixinho – Mestre, esta Mulher não tem meia medida.
Jesus, com a mão à frente da boca – É, ela acordou mal disposta.
(Sentam-se à mesa os restantes. À direita e à esquerda do Mestre, João e Tiago, respectivamente. Entre João e Pedro, está Judas. Uma das funcionárias pousa o vinho na mesa.)
Todos se servem, dizendo:
– Bendito seja Deus.
– “Ámen!”, acrescenta a Dona Augusta, piscando o olho esquerdo.
(A mesma funcionária traz os rojões. A Dona Augusta traz o arroz e, de seguida, vai para o balcão)
– Comei tudo, seus bois!
Jesus engole em seco.
(É retomado o diálogo)
Jesus, meio a medo – Confiai, esta ceia será a última. De agora em diante, não haverá mais ceia nenhuma.
Judas, confuso – O que dizeis, Senhor?
Jesus, calmo – Não haverá mais ceias.
Judas, inquieto – Por que razão?
Jesus, em jeito de sentença – Daqui a pouco explicar-vos-ei tudo.
Tomé, concordante – Cumpre que nos possais esclarecer, Mestre.
Simão, o Cananeu – Estou um bocado enjoado, Senhor. (dirigindo-se a Pedro) Esta comida é estranha, Pedro.
(Pedro mostra-lhe uma expressão de impotência. A Dona Augusta atira-lhe com uma chinela. Simão nem barafusta.)
Natanael, revelador – Ando cheio de pressentimentos. Hoje à tarde, notei que éramos seguidos.
Filipe – Também eu.
André, acenando com a cabeça – A cidade está cheia de espanhóis.
Mateus – E de carros.
Jesus, revelando paz – Nada temais. Nada vos acontecerá, por agora.
João – Pensamos em ti, Mestre.
(A Dona Augusta ri-se. Troça daquele diálogo.)
(Jesus levanta-se)
João – Aonde vais, Mestre?
Jesus – Vou à casa de banho. Onde é a casa de banho, gentil Senhora?
Dona Augusta – Tu ainda não comeste nada, só falas, só falas, e já vais cagar? Ó p*ta que te f*da (aponta) …É para aquele lado.
Pedro abana a cabeça em sinal de desaprovação.
Numa questão de minutos, volta Jesus, que ajeita as vestes. A Dona Augusta diz a uma das funcionárias que aposta que “aquele desgraçado não está a usar cuecas”.
Jesus senta-se no seu lugar, ao centro da mesa. Com voz forte, anuncia:
– Em verdade, em verdade vos digo: um de vós me traiu.
(A Dona Augusta vira-se para a funcionária: “Estamos a dar de comer a badalhocos. Traições?”)
Pedro, muito ‘azangado’ – Quem foi, Senhor?
Tiago, chocado – Quem é o infeliz?
Filipe, Natanael e Tadeu, incrédulos – Dizei-nos, Senhor!
Tomé, céptico – Não pode ser! Só acredito depois de ver!
Mateus, sentenciador – Tudo é possível neste mundo.
Simão, o Cananeu – Maldito sejas, traidor.
João, em súplica – Falai, Mestre!
Os outros – Quem é, Mestre?
(A Dona Augusta observa, divertida)
Pedro (ao ouvido de João) – Tu, que estás perto do Senhor, pergunta-lhe em particular e conta-me depois.
João (ao ouvido de Jesus) – Senhor, quem é?
Jesus, sussurrando – É aquele a quem eu entregar aquele (apontando para a farinheira) pedaço de comida.
De seguida, entrega a sua farinheira a Judas, proferindo as seguintes palavras:
– Judas, filho de Simão, come!
João e Pedro (que trocam rápidas palavras) – Não é possível!
Judas (comendo a farinheira) – Isto não é lá muito bom…
Dona Augusta, furiosa – Deves comer melhor em casa, ó boi!
Pedro, dirigindo-se a Judas – Dizes bem: o que dá gosto à comida é a boca. O mau paladar faz má a comida.
André, horrorizado – Estás perdido, Judas!
Jesus, em jeito de sentença – Que puseste, Judas, na tua alma?
Mateus, resignado – Que pôs a tua alma na tua boca?
Jesus, para Judas – O que tens a fazer, fá-lo depressa, Judas.
Judas, levantando-se – Retirar-me-ei, tenho assuntos a resolver. Mestre, eu…
Jesus – Chega! Guarda as palavras. Vai, Judas!
Dona Augusta – Vai vai, chulo. A tua sorte é que aquele (apontando para Pedro) já pagou adiantado. Mas, afinal, o que c*ralho fez ele? Vendeu a Torre da Alfândega?
Todos, à excepção de Jesus e da Dona Augusta – Sim, o que fez ele?
Jesus, entristecido e preocupado – A história conta-se da seguinte maneira: Há uns tempos, o Judas veio falar-me de uns negócios. De início, desconfiei, mas depois, pela forma entusiasmada como me falou, acabei por deixar-me “ir na onda”.
Pedro – Mas, Senhor, vós não ides na onda: Vós andais sobre ela.
Jesus – Deixa lá isso agora, Pedro. (pausa) Acontece que, depois dessa conversa, eu entreguei o grosso das minhas poupanças ao Judas, para que ele apostasse no PLACARD, no empate do Atlético de Madrid com o real. Mas o desgraçado apostou na vitória do real! Perdi quase tudo. Por isso é que esta é a última ceia, foi-se o dinheiro.
Mateus – E seu Paizinho cortou-lhe a mesada…
Jesus, cabisbaixo – Assim foi.
João, atarantado – Mas, Senhor, então por que razão partiu Judas?
Jesus – Não foi apenas com as minhas poupanças que ele andou a brincar. Agora tem a cabeça a prémio. Pelo que julgo saber, fugiu para casa de uma tia dele, em Jerusalém. Jerusalém é grande, e pouca gente sabe onde a tia dele mora.
Todos ficaram abatidos. A Dona Augusta desabafou o sentimento reinante, usando palavras, como de costume, vernáculas:
– Que grande filho da p*ta…
* pão ázimo
NOTA: Texto inspirado pela pintura “A última Ceia”, de Leonardo da Vinci;
Texto: Paulo César Gonçalves